Petição pelo pedido de declaração de inconstitucionalidade do art.º 3.º da Lei n.º 9/2010, que proíbe a adoção por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo
Para: Provedor de Justiça
Exmo. Senhor Provedor de Justiça,
A Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, veio estabelecer a admissibilidade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no ordenamento jurídico português.
Contudo, os n.ºs 1 e 2 do art.º 3.º desta lei dispõem que nenhuma norma relativa à adoção poderá ser interpretada no sentido de permitir a adoção, em qualquer das suas modalidades, por casais de pessoas do mesmo sexo.
Este artigo viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa - CRP), o direito a constituir família (art.º 36.º, n.º 1 CRP) e o princípio da igualdade, consagrado, em termos gerais, no n.º 1 do art.º 13.º CRP. Mas a Constituição não se limita a reconhecer este princípio geral. No n.º 2 deste artigo, a Constituição proíbe expressamente, desde a revisão constitucional de 2004, que alguém seja “privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (...) orientação sexual”.
O instituto da adoção tem como objetivo fundamental a prossecução do superior interesse da criança. O principal critério a ponderar na constituição do vínculo de filiação adoptiva é, precisamente, a prossecução do superior interesse da criança. Assim, o único argumento que poderia fundamentar a validade da proibição da adoção por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo seria o de que a adoção nestas condições é, sempre, e apenas em virtude de ser realizada por casais de pessoas do mesmo sexo, contrária ao superior interesse da criança. Só neste caso se poderia afirmar a existência de um verdadeiro conflito de interesses constitucionalmente protegidos: o superior interesse da criança vs. o direito a constituir família.
Contudo, esta pesada asserção – para além de necessitar do apoio de estudos científicos praticamente irrefutáveis para que a privação de um direito tão importante como o de constituir família pudesse sequer ser equacionada, o que está longe de acontecer – não poderia, em circunstância alguma, ser aceite à luz do referido n.º 2 do art.º 13.º da Constituição. É que o superior interesse da criança é o que se chama, em termos jurídicos, um conceito indeterminado e, portanto, insuscetível de definição, devendo ser concretizado no caso concreto: não importa saber em que consiste, em abstrato, o superior interesse da criança (nem isso é possível, pois todas as crianças são diferentes e têm necessidades diferentes), importa sim saber se o superior interesse de certa criança é prosseguido através da sua adoção por certa(s) pessoa(s) ou não. O legislador, naturalmente impossibilitado de conhecer todos os casos concretos, não é capaz de responder a esta questão. E também não pode estabelecer critérios de escolha dos pais adotivos discriminatórios exclusivamente em função da orientação sexual. Nessa escolha, devem ser levados em conta vários fatores (condições financeiras, sociais, emocionais, etc.), mas os deputados da Assembleia da República, em 2004, foram perentórios ao esclarecer que a orientação sexual não pode ser critério. Nem a favor, nem contra. O n.º 2 do art.º 13.º CRP concretiza o princípio geral da igualdade, enumerando alguns possíveis fatores de discriminação que não podem ser utilizados pelo legislador ou por quaisquer entidades públicas.
Deste modo, cada criança tem direito a que sejam escolhidos os pais adoptivos mais adequados ao seu caso concreto, sejam casados com pessoa do mesmo sexo ou não, após avaliação cuidada de todos os candidatos pelos serviços competentes.
Uma vez que não podemos aceitar a asserção de que a adoção por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo é, sempre, e apenas em virtude da orientação sexual dos membros do casal, contrária ao superior interesse da criança, não podemos considerar que um casal de pessoas do mesmo sexo não é igual, para efeitos da admissibilidade da adoção, a um casal de pessoas de sexo diferente. A não atribuição do direito à adoção no primeiro caso é, desta forma, uma injustificada violação do princípio da igualdade, como foi reconhecido, por exemplo, pelo Tribunal Constitucional da Áustria, em janeiro deste ano.
Por tudo isto, e em nome de uma sociedade livre de preconceitos, em que todos sejam tratados de forma justa pela lei e pelas instituições públicas e em que o superior interesse de cada criança possa ser prosseguido sem restrições arbitrárias repudiadas pelos princípios fundamentais da nossa Constituição:
Requeremos aos Exmos. Senhores, na qualidade de titulares dos órgãos competentes para o efeito, nos termos do art.º 281.º, n.º 2 CRP, que:
- Requeiram, junto do Tribunal Constitucional, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, na medida em que violam o princípio da dignidade da pessoa humana (art.º 1.º CRP), o direito a constituir família (art.º 36.º, n.º 1 CRP) e o princípio da igualdade (art.º 13.º, números 1 e 2 CRP).