Demissão do Prof. Jorge Torgal como Conselheiro Nacional de Saúde Pública
Para: Direção-Geral de Saúde e Ministério da Saúde
Temos vindo a assistir ao desenvolvimento de uma pandemia de proporções difíceis de aferir, mas em que percebemos que é simples chegar a cenários de enorme disrupção nos sistemas de saúde e temos exemplos próximos e inegáveis (como o Italiano). A situação pauta-se por uma grande incerteza, mas o historial recente de outros países dá-nos a oportunidade de entender os riscos de tomar decisões iniciais erradas. Precisamos de responsáveis capazes de assumir posições que não sejam toldadas por perspectivas radicais, quer em termos de excesso e pânico, quer em termos de incúria e laxismo, guiadas por dados e explicadas de uma forma clara.
O Professor Jorge Torgal veio dar a cara, a 11-03-2020, por uma recomendação cuja aceitabilidade está no limite da sensatez, o de não proceder a um fecho generalizado dos estabelecimento de ensino. De certa forma segue a posição de países como França, Alemanha ou Reino Unido, logo não é completamente inusitada, e face ao número ainda relativamente reduzido de casos em Portugal é aceitável dizer que o encerramento das escolas é talvez precoce. Seria interessante ver o país a tomar uma atitude pro-ativa, que dificilmente teria consequências piores do que a decisão oposta, mas aceita-se a possibilidade de não ser o momento.
No entanto, o problema prende-se com a idoneidade intelectual do mensageiro e o aparente músculo deste perante o Conselho. Há pouco mais de uma semana atrás (28 de fevereiro), o Prof. Torgal deu uma entrevista ao Jornal de Notícias (acessível em https://www.jn.pt/nacional/covid-19-e-menos-perigoso-do-que-virus-da-gripe-11867890.html ) de onde se retiram frases absolutamente inaceitáveis para alguém na posição em que está:
“[O COVID-19] É uma doença que tem tratamento.” — Comentário absolutamente críptico já que é manifestamente conhecido que não há vacina nem tratamento. É intolerável que um especialista em saúde pública diga algo tão basicamente e intrinsecamente falso.
“As pessoas têm de perceber que se o COVID-19 fosse um vírus grave ele não se difundia sem que se soubesse de onde vinha” — É uma afirmação sem qualquer nexo lógico, não é a proveniência que define a severidade de um vírus.
“Muito mais grave foi o H1N1, com mortalidade muita mais elevada e, mesmo assim, foi controlado.” — Imaginando que falamos da pandemia de 2009 com uma taxa de mortalidade bem conhecida de 0.03%, de facto resultou num valor assustador de entre 150 000 a 550 000 mortes, face a 0.7 a 1.4 biliões de pessoas infetadas num intervalo temporal de um ano. Se com a COVID-19 tivéssemos o mesmo número de infetados dentro de uma janela de um ano todos os serviços ficariam bloqueados como acontece presentemente no caso italiano, pelo que nos aproximaríamos de uma taxa de mortalidade igual à da italiana (6.2 % se assumirmos mortos/infetados, 46% se assumirmos mortos/(mortos+recuperados)) falamos de 6 milhões de mortos ou muito mais. Qualquer que seja o cenário, é absolutamente claro que a mortalidade é superior aos 0.03% que conhecemos ao H1N1.
“É menos perigoso que o vírus da gripe!” — Frase que tem sido avançada por várias pessoas em negação. Poderá vir a acontecer que mate muito menos pessoas do que a gripe este ano, mas cada vez é mais improvável. Em termos comparativos sabemos que a gripe sazonal tem uma taxa de mortalidade de 0.02-0.04%, não sabemos a taxa de mortalidade da COVID-19, mas conseguimos perceber que em Hubei é 5.9% (e estando a situação estabilizada é um valor semi-fechado), são universos completamente diferentes. Em Portugal morrem cerca de 3000 pessoas com gripe por ano, no caso de uma disrupção como a que aconteceu em Itália, chegar aos 50 000 casos basta para termos o mesmo número de mortos por COVID-19 que temos com a gripe. Com a tendência de duplicação a cada 3 dias que se verifica atualmente nos principais países europeus chegamos lá em 30 dias, e o problema dos crescimentos exponenciais é que 3 dias depois estamos nos 100 000 casos. A menos que existam medidas preventivas e não reativas não temos qualquer indicação de que a epidemia abrande por si e é pensamento mágico achar o contrário.
“Em Portugal, em 2014, os casos de legionela em Vila Franca de Xira mataram muita gente e deixarem sequelas em muitas mais. Isso, sim, é preocupante.” — Em Vila Franca de Xira 73 pessoas foram afetadas pelo surto com 8 mortes. Foi uma situação trágica mas contida e fechada. Amanhã de manhã o número de pessoas afetadas passará de certo este valor, e embora a taxa de mortalidade da COVID-19 seja provavelmente mais baixa do que os 10% que implicam estes 8 em 73, é já óbvio que em Portugal o número de mortos será muito mais elevado no final da epidemia. A frase é assustadoramente absurda.
Mudou alguma coisa na sua vida por causa por causa do perigo de contágio? ”Nada, não mudei absolutamente nada.” — Deve-se subentender que o professor já toma todas as precauções recomendadas (lavagem de mãos, distanciamento social), mas ter um responsável público que nesta altura implica que não há qualquer problema em manter os comportamentos normais quando todas as evidências (incluindo o discurso presente da DGS) implica que devemos alterar muitíssimo os hábitos é no mínimo absurdo.
Tememos que este senhor esteja manietado pelas afirmações absolutamente infelizes que proferiu, ou, pior, que continue a achar que elas são sensatas. Reiteramos que a decisão sobre fecho generalizado de estabelecimentos de ensino não é simples, e de facto poderá estar errada, mas tem precedentes.
Albânia, Mongólia e Paraguai tomaram a decisão de fechar as escolas com o aparecimento do 1º caso, uma medida sem dúvida draconiana cuja eficácia não é possível medir visto ser muito recente. No outro lado do espectro Itália (4 março) - 3089 infetados, China (26 janeiro) - 2062 infetados, Coreia do Sul (23 fevereiro) - 602 infetados, Dinamarca (13 março) - 262 infetados e Japão (27 Fevereiro) - 214 infetados, parecem ser os países que se viram forçados a tomar esta medida face a situações calamitosas (excluíndo talvez Dinamarca e Japão em que ainda parece prudência. Os restantes países que fecharam inteiramente as escolas, fizeram-no com uma média de 20 casos (Azerbeijão (2 março) 3 infetados; Bahrain (25 fevereiro) 23 infetados; Czech Republic (10 março) - 41 infetados; Grécia (6 março) - 45 infetados; Irão (23 fevereiro) - 43 infetados; Iraque (27 fevereiro) - 7 infetados; Libano (6 março) - 22 infetados; Macedónia (10 março) - 7 infetados; Qatar (9 março) - 18 infetados; Roménia (9 março) - 15 infetados; Arábia Saudita (8 março) - 11 infetados; Emirados Árabes Unidos (4 março) - 27 infetados). Desta lista dever-se-à possivelmente retirar o Irão, já que calculamos que os casos estivessem fortemente sub-detetados à data e que a medida tenha sido forçada. No outro lado da estratégia estão países como a França, Alemanha e Espanha, que mesmo com mais de 1000 casos não avançaram com a medida, o que mostra que não é o valor absoluto que justifica a decisão.
Ao longo dos últimos dias a sociedade portuguesa tem-se mostrado disponível e preocupada, pronta para acatar as decisões técnicas da DGS.
A janela de oportunidade é pequena para controlar um potencial flagelo.
Não podemos ter decisores técnicos que exibem pensamento mágico quando é necessário olhar para os números com pragmatismos e sem demagogias.
Não podemos ter um Conselho Nacional de Saúde Pública refém de posições sem fundamento.
Precisamos de ter uma comunicação mais clara das justificações por trás das decisões (o Professor Francisco George afirmou tautologicamente no noticiário da SIC da noite, 11/03/2020, que a justificação para não fechar estabelecimentos de ensino era o Conselho de especialistas ter decidido que não havia justificação para fechar a menos que as autoridades de saúde aconselhassem fechar. O que está longe de ser uma justificação), e de uma declaração pragmática de quais são os números necessários para que a decisão deva ser revista (400 casos dentro de uma semana merecem revisão? Quantos casos seriam necessários hoje para uma recomendação de fecho dos estabelecimentos de ensino? Nunca haverá uma recomendação de fecho independentemente dos números porque a situação é menos grave do que a gripe mesmo que seja mais grave?), de forma a avaliarmos a sensatez das previsões e do pensamento que rege estes nossos decisores.
Susana Pereira, 11 de março de 2020