Manifesto 343 [50 anos depois da França]
Para: Brasileiras
Cerca de 200.000 mulheres abortam todos os anos no Brasil*. Fazem-no em condições perigosas devido à clandestinidade a que estão condenadas, ao passo que esta operação, realizada sob vigilância médica, seria muito mais simples e segura. Há um silêncio contundente sobre essas milhões de mulheres. Eu declaro que sou uma delas. Eu declaro ter abortado. Assim como exigimos acesso gratuito aos métodos de controle de natalidade, exigimos o aborto gratuito.
Aborto. Uma palavra que parece expressar e limitar a luta feminista de uma vez por todas. Ser feminista é lutar pelo aborto livre e gratuito.
Aborto. É visto como aquele negócio de mulherzinhas, algo como cozinhar, fraldas, algo sujo.
Lutar pelo aborto livre e gratuito parece ridículo ou mesquinho. Fica sempre aquele cheiro de hospital, comida ou de cocô atrás das mulheres.
A complexidade das emoções associadas à luta pelo aborto indica exatamente a nossa dificuldade de ser o que somos, a dificuldade que temos em nos convencer de que vale a pena lutar por nós.
Nem é preciso lembrar que parece algo normal não termos o direito de dispor de nossos corpos como outros seres humanos. No entanto, nossa barriga pertence a nós mesmas.
O aborto gratuito e aberto não é o objetivo final da luta das mulheres. Ao contrário, ele atende apenas ao requisito mais básico, caso contrário, a luta política não pode nem começar.
É de vital necessidade que as mulheres recuperem e reintegrem seus corpos. Elas são aquelas cuja condição é única na História: seres humanos que, nas sociedades modernas, não dispõem da livre disposição de seus corpos. Até agora, apenas escravos experimentaram essa condição.
O escândalo persiste. A cada ano, 1.500.000 mulheres vivem na vergonha e no desespero. 5.000 de nós morrem. Mas a ordem moral não é perturbada. Gostaríamos de gritar.
O aborto livre e gratuito é:
parar imediatamente de ter vergonha do seu corpo, ser livre e orgulhosa do seu corpo como todos aqueles que até agora o usaram plenamente; não ter mais vergonha de ser mulher.
Um ego que se dilacera em mil pedaços é o que vivem todas as mulheres que têm que realizar uma experiência de aborto ilegal;
ser você mesma o tempo todo, não ter mais esse medo vil de ser “pega”, presa, de ficar desamparada com uma espécie de tumor na barriga;
uma luta excitante, na medida em que, se a vencer, só começo a pertencer a mim mesma e não mais ao Estado, a uma família, a um filho que não desejo;
um passo para alcançar o controle total da produção de crianças.
Mulheres como todos os outros produtores têm o direito absoluto de controlar todas as suas produções. Esse controle implica uma mudança radical nas estruturas mentais das mulheres e uma mudança igualmente radical nas estruturas da sociedade.
1. Eu terei um filho se eu quiser, nenhuma pressão moral, nenhuma instituição, nenhum imperativo econômico pode me forçar a fazê-lo. Este é meu poder político. Como qualquer produtor, enquanto espero por algo melhor, posso pressionar a sociedade através da minha produção (greve de crianças).
2. Terei um filho se eu quiser e se a sociedade em que estou dando à luz for adequada para mim, se ela não me tornar escrava dessa criança, sua ama, sua empregada.
3. Terei um filho se eu quiser, se a sociedade for adequada para mim e adequada para ele, eu sou responsável por ela, sem risco de guerras, sem trabalho sujeito a outras pessoas.
[Não à liberdade supervisionada]
A batalha que surgiu sobre o aborto está acontecendo nas costas das principais interessadas, as mulheres. A questão de saber se a lei deve ser liberalizada, a questão de saber quais são os casos em que se pode pagar o aborto, enfim, a questão do aborto terapêutico não nos “interessa” porque “não nos diz respeito”, não.
O aborto terapêutico requer "boas" razões para ser "permitido”. Resumindo, isso significa que devemos merecer não ter filhos. Que a decisão de tê-los ou não, não depende de nós mais do que antes.
Continua a operar aquele princípio em que é legítimo forçar as mulheres a ter filhos.
Mudar a lei, permitindo exceções a esse princípio, só a fortaleceria. A mais liberal das leis ainda regulamentaria o uso de nossos corpos.
O uso do nosso corpo não precisa ser regulamentado. Não queremos tolerâncias, pedaços do que outros humanos adquirem ao nascer: a liberdade de usar seu corpo como bem entenderem.
Iremos nos opor a qualquer lei que pretenda regular nosso corpo de alguma forma. Não queremos uma lei melhor, queremos sua abolição pura e simples.
Não pedimos caridade, queremos justiça. Há 100 milhões de nós aqui sozinhas. 100 milhões de “cidadãs” tratados como gado.
Para os fascistas de todos os matizes – quer eles se nomeiem como tais e nos espanquem ou quer eles se digam católicos, fundamentalistas, demógrafos, médicos, especialistas, juristas, “homens responsáveis” - nós dizemos que os desmascaramos.
Que os chamamos de assassinos do povo. Que os proibimos de usar o termo "respeito pela vida", que é obscenidade em suas bocas. Que somos 100 milhões, que lutaremos até o fim porque não queremos nada mais do que o nosso direito: a livre disposição de nossos corpos.
*DataSUS (Ministério da Saúde,2020)
[ESSE TEXTO REPRODUZ EM SUA INTEGRALIDADE O "MANIFESTE DES 343", O MANIFESTO ESCRITO POR SIMONE DE BEAUVOIR E ASSINADO POR 343 MULHERES FRANCESAS COMO CATHERINE DENEUVE, JEANNE MOREAU, MARGUERITE DURAS, ARIANE MNOUCHKINE E GISELE HALIMI, PUBLICADO EM 5 DE ABRIL DE 1971. O manifesto histórico das mulheres francesas antecedeu uma das maiores conquistas das feministas na França: a legalização do aborto. Elas ficaram conhecidas como as "343 SALOPES", as "343 -", titulo do qual se orgulham e pelo qual são festejadas até hoje, em agradecimento da sociedade francesa pela grande conquista alcançada].