CARTA ABERTA
No dia 11 de outubro de 2017, um coletivo de juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão, no âmbito do processo n.º 355/15.2 GAFLG.P1, tendo o mesmo sido relatado pelo Juiz Desembargador Neto de Moura e subscrito pela Juíza Desembargadora Maria Luísa Arantes. Do referido acórdão (que não se encontra, ainda, publicado, mas que pode, desde já, ser consultado em https://jumpshare.com/v/XmGPjJyBg6mJMdehLjp8) constam as seguintes considerações, tecidas a propósito da fundamentação da determinação da medida da pena:
«Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse. Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher. Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida. Por isso, pela acentuada diminuição da culpa e pelo arrependimento genuíno, podia ter sido ponderada uma atenuação especial da pena para o arguido X. As penas mostram-se ajustadas, na sua fixação, o tribunal respeitou os critérios legais e não há razão para temer a frustração das expectativas comunitárias na validade das normas violadas.»
A fundamentação descrita é, em si, atentatória dos princípios mais basilares da Constituição Portuguesa, com especial relevo para os princípios da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1.º da CRP ), do Estado de Direito Democrático, Pluralista e laico (art. 2.º da CRP ), da igualdade (art. 13.º da CRP ) e dos direitos à integridade física e moral (art. 25.º da CRP), ao livre desenvolvimento da personalidade e ao bom nome e reputação (art. 26.º da CRP). Desde logo, e ainda que se pudesse admitir uma fundamentação judicial assente em puros (porventura, nem sequer unânimes) juízos morais ou religiosos – o que não se afigura admissível num contexto de pluralismo democrático –, haveria ainda que confrontar esse juízo com uma manifesta e profunda violação do princípio da igualdade.
As referências constantes da fundamentação não partem de uma censura (obviamente moral, já que não suportada pela lei ou pela Constituição) do adultério, em geral, mas apenas do “adultério da mulher”, tendo em vista a honra “do homem traído, vexado, humilhado”. Sendo certo, porém, que, nesta parte, a fundamentação não está a pensar apenas no caso concreto, exibindo pretensões de generalidade e invocando – manifestamente em vão – uma suposta adesão social ao seu pensamento: «o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher».
Não obstante, esta fundamentação é ainda fonte das mais sérias apreensões. Ao centrar o juízo de atenuação no comportamento da vítima – ao invés de, como seria ainda aceitável e compatível com a Constituição e a lei penal, no estado emocional do agente –, a referida fundamentação transmite uma ideia errada e extremamente perigosa para os bens jurídicos que a lei penal especialmente pretende tutelar: a saúde e a vida das mulheres no contexto de relações de intimidade. Decorre desta fundamentação que aquele coletivo de juízes do Tribunal da Relação do Porto ensaia um juízo de proporcionalidade entre a moralidade da mulher (des)honesta e a desforra do homem traído. Não chegando ao ponto de desculpar o comportamento dos arguidos – até porque não o poderia fazer, por se tratar de matéria fora do âmbito do recurso – deixa implícito que uma agressão violenta (executada com uma moca de madeira cheia de pregos), levada a cabo por um homem traído, é, apesar de legalmente censurável, socialmente compreensível e até tolerável.
Sabemos que a violência doméstica constitui, ainda, uma das principais fontes de violência interpessoal , com especial incidência sobre a mulher . Sabemos também que, na origem da violência doméstica, encontramos, essencialmente, fatores socioculturais, dos quais se destacam os seguintes: a tolerância social (a qual vai sendo reforçada a partir de fundamentações judiciais como as do acórdão em crise); o consumo de álcool; e a prevalência de expectativas rígidas sobre o comportamento da mulher em sociedade (fator que também é reforçado por uma argumentação que se centra num juízo moral sobre a mulher adúltera). Numa ótica de prevenção, trata-se, por conseguinte, de uma argumentação particularmente perigosa, e, por isso, particularmente perversa para a segurança da mulher na sociedade portuguesa.
É natural, portanto, que a publicitação do teor do acórdão em crise tenha suscitado o previsível espanto e a subsequente incredulidade sociais. Contexto este que foi sensivelmente agravado quando se vieram a conhecer outras decisões e acórdãos polémicos. Descobriu-se que o mesmo Juiz Desembargador Neto de Moura tinha proferido, a 15 de junho de 2016, uma decisão sumária (processo n.º 388/14.6 GAVLC.PI, que pode ser consultada em https://jumpshare.com/v/W7r332YP2W9BOC5CxWqv) na qual se podem ler as seguintes considerações, desta feita tecidas a propósito da formação da convicção do legislador:
«Na contestação que apresentou, o arguido alegou que a denunciante, sua ex-companheira, ainda quando viviam como marido e mulher, mantinha uma relação extraconjugal com um indivíduo de nome. Os documentos que juntou com a contestação atestam isso mesmo, que a denunciante andava a cometer adultério é até nem seria a primeira vez que o fazia. Ora, o tribunal ignorou completamente essa alegação, não incluiu o facto alegado no elenco de factos provados nem nos não provados, apesar de estar bem de ver que, pelo menos, para a medida da pena, esse é um facto relevante. Há elementos que indiciam ser a denunciante uma adúltera reincidente, que andava a preparar a sua saída da casa que era a morada do casal para ir viver com o amante e por isso mal se compreende que se tenha dado como provado que ela foi forçada a sair de casa. Na realidade, há motivos bem fortes para questionar a fiabilidade das declarações da denunciante e se não a movem interesses egoístas e mesquinhos. Já agora, uma vez que a suposta religiosidade do arguido foi chamada a terreiro para o descredibilizar, permita-se-nos esta referência bíblica: «Assim é o caminho de uma mulher adúltera: ela comeu e esfregou a boca, e disse: "Não cometi nenhum agravo"» (Provérbios 30:20). E, ainda, esta do sábio rei Salomão: «Quem comete adultério . . . é falto de boa motivação" (Provérbios 6:32). Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral. Não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos. Que pensar da mulher que troca mensagens com o amante e lhe diz que quer ir jantar só com ele "para no fim me dares a subremesa"? Isto, está bem de ver, enquanto o companheiro ficaria a cuidar dos filhos menores do casal...».
De novo se encontram as mesmas fontes de preocupação (e violação da Constituição), ao que acresce um novo dado: a crer na fundamentação, o Juiz Desembargador Neto de Moura parte do pressuposto de que uma mulher que tenha mantido, durante a constância do casamento, alguma relação de caráter amoroso com outra pessoa, é «uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral » e, consequentemente, uma pessoa em cujas palavras não se pode vir a fundar – independentemente do contexto – a convicção de qualquer tribunal. Portanto, a mulher adúltera é, em princípio, mentirosa, as suas queixas devem ser desconsideradas e as suas palavras desacreditadas e, se vier a ser agredida (o que, assim, muito dificilmente se conseguirá demonstrar em tribunal, salvo quando existirem várias testemunhas imparciais e idóneas, sendo que estas não poderão ser, como decorre da decisão sumária, familiares da vítima) apenas pode culpar-se a si própria, já que a sua falta de «probidade moral» torna toleráveis e compreensíveis as agressões.
Mas não nos ficamos por aqui. Foi ainda detetado um terceiro acórdão, relatado pelo Juiz Desembargador Neto de Moura e subscrito pela Juíza Desembargadora Alda Tomé Casimiro, de 23 de novembro de 2010, processo n.º 856/08.9TAOER.L1-5 (disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl1.nsf/0/06ff0f8ee0b94645802577ff0057fde4?OpenDocument), em que, de modo semelhante à decisão sumária, são tecidas considerações duvidosas sobre a credibilidade da ofendida com base na possibilidade (pois que, neste caso, se tratava de uma mera possibilidade) de esta ter mantido uma relação extraconjugal:
«Como se refere no acórdão recorrido, o arguido negou, no essencial, a prática dos factos. Negou que alguma vez, ao longo dos 16 anos que durou o casamento, tivesse exercido qualquer tipo de violência sobre a mulher e/ou sobre os filhos. A postura de negação sistemática é habitual nestas situações, mesmo quando, como é caso, são vários os episódios de violência física relatados com pormenor pela vítima e atestados por várias pessoas. Mas há que ser cauteloso e evitar visões maniqueístas das situações: nem sempre o arguido é o demónio e a(o) ofendida(o) o anjo, a vítima cândida, inocente e indefesa que merece todo o crédito. Concretizando, a ofendida S… não será, propriamente, aquela pessoa em quem se possa acreditar sem quaisquer reservas. Vem referido no acórdão (estando a afirmação apoiada em documento) que, no âmbito dos acordos efectuados para a convolação do divórcio litigioso para divórcio por mútuo consentimento, ela se comprometeu a fazer “tudo quanto estiver ao seu alcance para promover o arquivamento” dos processos de natureza criminal pendentes e não honrou o compromisso assumido. No episódio do dia 5 de Maio de 2008, é inaceitável e incompreensível a sua atitude de recusar ao arguido, que lhos pediu, a entrega temporária dos documentos de identificação dos filhos. Permitiu, assim, que ficasse a pairar a ideia de que não será, de todo, infundada a acusação de ter provocado, intencionalmente, a situação de agressão física de que foi vítima. Por último, não podem ser ignoradas as referências a uma relação extra-conjugal da ofendida S… (e não foi, apenas, o arguido a referir-se-lhe) que teria sido a causa próxima de toda esta situação conflitual.»
Enfim, embora se tenham detetado outros acórdãos problemáticos e outros aspetos igualmente contenciosos das decisões já referidas – matéria que será desenvolvida em Exposição ao Conselho Superior de Magistratura – conclui-se que estas três decisões constituem fundamento suficiente para se avançar com a presente Carta Aberta. Efetivamente, tais decisões, pelo teor das suas argumentações, em primeira linha e, numa segunda abordagem, pelo sentido do decidido, geram sérias dúvidas sobre:
a) O nível de proteção que as mulheres vítimas de violência doméstica podem receber dos tribunais portugueses;
b) O impacto de juízos morais tendencialmente machistas e de estereótipos de género (“as mulheres mentem muito”, “as mulheres só pensam em dinheiro”, “as mulheres inventam agressões para ter vantagens patrimoniais”) na formação da convicção dos/as juízes/as portugueses/as (pelo desmerecimento da credibilidade da ofendida) e na decisão de casos concretos de violência doméstica (especialmente na determinação da medida da culpa do agressor doméstico);
c) Um temerário menosprezo da perigosidade do agressor doméstico e do risco de reincidência (uma vez que a reincidência não diz respeito apenas – ao contrário do que é referido em todas as decisões analisadas – à vítima já identificada, havendo ainda perigo face a qualquer outra mulher com quem os condenados se venham a relacionar intimamente) e, consequentemente, um enorme risco para os bens jurídicos penalmente tutelados.
Tendo em vista as áreas de maior preocupação assinaladas, são feitas as seguintes solicitações:
1.ª Solicitação – Para a melhoria do controlo democrático da função jurisdicional, através da identificação e análise crítica das tendências jurisprudenciais, recomenda-se e solicita-se ao Conselho Superior de Magistratura que promova a publicação de todas decisões (decisões sumárias e acórdãos) dos Tribunais Superiores (Relações e Supremo Tribunal) transitadas em julgado, quer através da já criada ECLI, quer em qualquer outra plataforma, ainda que em colaboração com o Ministério da Justiça. Esta solicitação é igualmente dirigida ao Ministério da Justiça.
2.ª Solicitação – Solicita-se ao Conselho Superior de Magistratura que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 13.º da Lei de Organização e Funcionamento do CSM, delibere que os momentos formativos dos magistrados (formação inicial e formação contínua) tenham uma maior dimensão interdisciplinar (incluindo a aquisição de conhecimentos nas +áreas de criminologia, sociologia, e psicologia) e contem com uma maior participação de formadores de outras áreas do saber jurídico ou da sociedade civil. Esta solicitação é dirigida também ao Centro de Estudos Judiciários.
3.ª Solicitação – Solicita-se ao Conselho Superior de Magistratura que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 13.º da Lei de Organização e Funcionamento do CSM, delibere incluir nos momentos formativos dos magistrados (formação inicial e formação contínua) formação para a igualdade de género. Esta solicitação é dirigida também ao Centro de Estudos Judiciários e à Comissão para a Igualdade de Género.
4.ª Solicitação – Solicita-se ao Conselho Superior de Magistratura que se pronuncie sobre o escopo dos institutos da escusa e da suspeição, atenta a reiterada e excessivamente restrita (e, assim, inoperante) interpretação que dos mesmos é feita pela jurisprudência nacional, se necessário propondo as alterações legislativas relevantes e necessárias. Esta solicitação é igualmente dirigida ao Ministério da Justiça.
5.ª Solicitação – Solicita-se ao Conselho Superior de Magistratura que, ao abrigo do disposto art. 132.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, abra inquérito contra os Juízes Desembargadores Neto de Moura, Maria Luísa Arantes e Alda Tomé Casimiro pelo teor das fundamentações constantes dos três acórdãos referidos como pressuposto material da Exposição, por flagrante violação do disposto nos arts. 4.º e 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e dos arts. 1.º, 2.º, 13.º, 25.º, 26.º e 204.º da CRP.
6.ª Solicitação – Solicita-se ao Ministério Público, através da Procuradora-Geral da República que use todos os meios processuais ao seu dispor para fazer sindicar a constitucionalidade da interpretação normativa acolhida pelo referido acórdão, designadamente, mediante recurso para o Tribunal Constitucional.
Portugal, 26 de outubro de 2017
As/Os Subscritoras/es:
APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
Capazes Associação Feminista
UMAR - União Mulheres Alternativa e Resposta
Catarina Marcelino - Deputada à Assembleia da República
Rita Ferro Rodrigues - Presidenta da Capazes Associação Feminista
João Lázaro - Presidente da APAV
Maria José Magalhães - Presidenta da UMAR
Fernanda Câncio - Jornalista
Inês Ferreira Leite - Professora na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Isabel Moreira - Deputada à Assembleia da República
Vera Sacramento - Vice-Presidenta da Capazes Associação Feminista
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